Acostumados aos revezes de última hora e a sempre
aprenderem algo novo, já faz parte da rotina dos jornalistas
as transformações do ofício. Com a evolução do acesso
aos dados públicos e da maior transparência do governo,
os profissionais de imprensa vivem hoje uma mudança
importante: saíram de um ambiente com certa escassez
de dados públicos para, agora na internet, ter à disposição
muito mais do que conseguiriam analisar sozinhos.
Para
tirar melhor proveito do Big Data, como é conhecido
o grande volume de informações on-line, bons e velhos
aliados do jornalismo, como bloquinho, caneta, gravador
e câmera dividem espaço com recursos digitais como
Excel, Python, My SQL e Mongo. Aos poucos, essas “novas”
ferramentas ficam mais comuns nas redações e ganham
a atenção e o gosto dos jornalistas.
De
acordo com profissionais que já incorporaram as inovações
ao trabalho, o interesse pela análise de dados é positivo
e traz uma série de benefícios à apuração. Além de
ajudar a desconstruir uma pauta que não se sustenta,
ter uma boa pesquisa de dados dá suporte a uma matéria
carente de informações, enriquecendo o conteúdo.
“O
jornalismo de dados é só um jeito diferente de apurar.
Não é saindo na rua, fazendo o povo-fala, mas usando
um método um pouco mais científico. Se você é um analista
de dados, o prazer é pegar uma tabela, aquela coisa
cheia de números e dados, e mexer até tirar uma conclusão”,
explica Rodrigo Burgarelli, repórter do Estadão Dados,
equipe especializada do jornal O
Estado de S. Paulo.
Crédito:Divulgação
Rodrigo
Burgarelli
“Não
é muito diferente do processo para obter fontes. Hoje
temos direto na web muitos dados abertos relevantes
e utilizamos a própria tecnologia para nos ajudar.
A escala da investigação vai ser muito maior, e consequentemente,
seu impacto também”, acrescenta Gustavo Faleiros,
co-criador e editor do InfoAmazônia, um projeto de
jornalismo de dados sobre a Amazônia.
Uma
pergunta a mais
Para
buscar dados e cruzar informações, hoje o jornalista
tem como fontes importantes os sites do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), da Organização
das Nações Unidas (ONU), do Banco Mundial, do Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep), entre outros, além das informações
que podem ser obtidas por meio da Lei de Acesso à
Informação (LAI), aprovada em 2011.
No
entanto, para Tiago Mali, repórter da revista Época,
tão ou mais importante que saber onde buscar as informações
e como usar as novas ferramentas é não se contentar
com o conteúdo que vem, por exemplo, de assessorias
de imprensa ou de declarações oficiais.
“As
pessoas, por não terem essa perspectiva de jornalismo
de dados, não sabem como fazer uma apuração mais aprofundada,
deixam de vasculhar nessas bases que estão sendo abertas.
Quando o jornalista simplesmente repercute as informações
das assessorias de órgãos públicos eles deixam de
lado uma série de pautas muito mais interessantes”.
Mestre
em ciência da informação e doutor em comunicação e
cultura, Fábio Malini concorda e diz que não é possível
separar a prática de um jornalismo investigativo.
Ele, que coordena o Laboratório de Pesquisa sobre
Internet e Cultura (Labic) na Universidade Federal
do Espírito Santo, defende que o bom jornalista de
dados precisa identificar algo que não estava aparente
e transformar em uma notícia visualizada. “A reportagem
continua um gênero muito importante no interior do
jornalismo de dados”.
Outro
quesito importante, segundo Sabrina Passos, editora-chefe
do Kzuka, portal de notícias voltado para o público
jovem do Grupo RBS, é manter o mesmo procedimento
do jornalismo feito “face to face”. “Os cuidados fora
da internet devem ser usadas nela também. Você não
pode pegar informações de um relatório sem saber de
onde ele veio. Não é porque está lá que é real. Hoje
qualquer coisa vira um dado na internet”.
Crédito:Divulgação
Sabrina
Passos
Tempo,
dinheiro e pessoas
Apesar
da popularidade, profissionais consideram baixa a
quantidade de matérias produzidas por meio da análise
de dados. Segundo eles, o principal entrave já não
é a tecnologia nem o nível de treinamento dos jornalistas,
mas a falta de tempo e dinheiro das empresas. Algumas
apurações podem ser feitas em horas, outras, exigem
dias, semanas ou meses de dedicação.
Para
driblar essas dificuldades, as redações têm criado
pequenos núcleos ou tratado o Big Data como insumo
constante de pautas. Durante as eleições de 2014,
por exemplo, a Zero Hora fez um especial que relacionou
candidaturas e gastos de campanhas dos deputados estaduais.
Já um outro gráfico on-line utilizou dados da Secretaria
de Segurança Pública para mapear a incidência de roubos
de carro em Porto Alegre (RS), utilizando um recurso
de geolocalização.
“Não
posso ter toda minha redação dedicada a ficar em cima
dos dados do governo e empresas, mas temos repórteres
e editores que lidam muito bem com dados e conseguem
deixá-los acessíveis. Para 2015 temos um planejamento
de pautas e estão previstas muitas matérias envolvendo
Big data”, diz Sabrina.
Já
na Folha,
o jornalista e especialista em análise de dados Marcelo
Soares interrompeu o blog Afinal de Contas quando
o dia a dia passou a demandar muita dedicação. Ele,
que se define como “fascinado por dados brutos e informações
públicas”, trabalha com dados “o tempo inteiro” e
colabora com todas as editorias.
“Analiso
métricas relacionadas às reportagens do jornal, para
verificar onde podemos melhorar. Nos últimos meses,
também, cresceu muito a demanda por análise de dados
nas editorias. Em épocas como a de eleição, a maior
parte do meu tempo é dedicada a isso”.
Abrindo
espaço para novas funções no jornalismo, a análise
de Big Data também requer mão de obra de outras frentes
de trabalho, como ciência da computação, ciências
sociais, serviço social, design, entre outros. “Não
há como nenhum desses pesquisadores produzir sozinho
o desenvolvimento de aplicações, de códigos, de interpretações
e análise”, defende Malini.
O
processo de produção da pauta também é diferente,
como explica Burgarelli, do Estadão. “O trabalho começa
com a pauta, uma pergunta, a abordagem. Depois vem
a parte técnica, que é conseguir a base de dados,
tratar, fazer a análise, algo que, muitas vezes, não
vai ser feito por quem teve a ideia. E depois tem
que entrevistar pessoas, fazer fotos, vídeos, escrever.
É uma tarefa multidisciplinar”.
Bom
de conta
Quem
cursou jornalismo para fugir dos números pode ter
que dar meia volta e reatar laços com a matemática.
Segundo Mali, da Época, sem alguns conceitos básicos
como regra de três, porcentagem, cálculo e variações
é impossível conseguir matérias interessantes a partir
de dados.
O
profissional lamenta o “atraso” nas faculdades de
jornalismo do País, que raramente incorporam conceitos
do jornalismo de dados na grade curricular ou oferecem
aulas sobre apuração com o uso de Big Data. “Quando
eu dava o curso de jornalismo de dados na Associação
Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) era
comum gastar muito tempo voltando a conceitos mais
básicos. Essas coisas, se você não souber, pode tirar
conclusões falsas. Não estou falando de ciência espacial,
não tem nada complexo. Vale resgatar aquilo aprendido
no colégio”.
Apesar
de as noções de matemática e a habilidade com planilhas
digitais não fazerem parte das exigências do mercado,
Sabrina acredita que cada vez mais elas vão pesar
na hora de uma eventual contratação. “É um diferencial.
O jornalista não aprende a lidar com dados e estatísticas
na faculdade. Sabemos lidar muito bem com as palavras,
mas nem tanto com os números. É preciso desenvolver
essa habilidade”.
Mesmo
em paz com os números e com pleno domínio dos recursos
digitais, jornalistas defendem que o kit principal
para trabalhar com dados ainda é o conjunto das características
básicas do repórter, como a curiosidade, a paciência
para cruzar informações e avaliar o que é notícia,
o instinto e o faro.
“Não
adianta cercar-se de ferramentas digitais sem ter
ideia do que fazer com os dados. Precisa compreender
os limites e potencial deles e ter uma ideia de como
mostrar isso ao leitor. A única coisa obrigatória
é saber trabalhar com informação, juntar lé com cré”,
finaliza Soares.
Be
a Bá do Big Data
Especialistas
ouvidos por IMPRENSA destacam as principais ferramentas
para quem quer começar a trabalhar com jornalismo
de dados
Excel
e Open Office
Planilhas
eletrônicas são o “bloquinho e caneta” dos dados.
Elas estão em quase todo computador, além de relativamente
fáceis de usar. Com elas é possível aplicar ou mixar
bases de dados diferentes, criar tabelas dinâmicas
e extrair resultados.
Quadrigr.am/
Infogr.am
Ferramentas
de fácil utilização, voltadas para criar design de
dados e infográficos interativos.
Google
Spreadsheets/ Google Docs
Ideal
para compartilhar dados de forma gratuita com outros
jornalistas, além de criar planilhas eletrônicas.
Google
Fusion Tables
Permite
trabalhar com bases de dados, ordená-los para apresentação
estatística, criar gráficos e mapas com recurso de
geolocalização. Os resultados podem ser compartilhados
através de um link na própria reportagem.
Data
Wrapper
Cria
gráficos, tabelas e mapas que podem ser embedados
em reportagens online a partir da base de dados fornecida
pelo jornalista.
Python
Possui
linguagem de programação intuitiva e que auxilia o
repórter a organizar sua base de informações, permitindo
agrupamentos, limpeza e tratamento dos dados.
Tableau
Cria
infográficos a partir de planilhas. Não tem a mesma
flexibilidade que se teria programando do zero, mas
depois de pegar o jeito é possível montar uma peça
poderosa em poucos minutos.